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“Receitamos remédios psiquiátricos a gente saudável”, diz o médico Allen Frances

Aproveitamos o Blog dessa semana para divulgar entrevista da Revista Época com Allen Frances. Acompanhe:

O especialista americano diz que nos acostumamos a usar remédios para tratar a angústia normal provocada por problemas reais. E que, ao mesmo tempo, negligenciamos pessoas que sofrem de doenças graves.

O psiquiatra americano Allen Frances acha que usamos remédios demais, e para tratar gente que passaria bem sem eles.

Frances é professor emérito da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Entre as décadas de 1980 e 1990, participou da elaboração do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), um livro publicado pela Sociedade Americana de Psiquiatria que relaciona transtornos mentais diagnosticáveis e faz recomendações de como tratá-los. A equipe que ele liderou foi a responsável por incluir problemas como Asperger – uma forma branda de autismo – e transtorno bipolar ao rol de vilões para quais os médicos deveriam atentar.

A intenção foi boa. O resultado, diz ele, o pior possível.

No início dos anos 1990, o DSM se tornara tão influente no mundo todo, que cada novo acréscimo à lista de doenças era seguido por uma explosão de diagnósticos errados. Os pacientes pensavam sofrer das novas doenças. Os médicos, que interpretavam mal o manual, achavam o mesmo.

O resultado: pessoas saudáveis foram consideradas doentes – e passaram a receber medicamentos dos quais não precisavam. “Tratamos pessoas que estão, essencialmente, bem. Mas que estão vivendo sob circunstâncias difíceis”, diz ele. Frances reuniu suas críticas à medicalização excessiva em um livro –Voltando ao normal (Versal Editores, 365 páginas), lançado neste ano no Brasil. Segundo ele, desenvolvemos o mau hábito de medicar a angústia provocada por problemas alheios a nossa vontade – como o desemprego ou a instabilidade política em um país – em lugar de reservar as pílulas para o tratamento de doenças psiquiátricas reais. Em entrevista a ÉPOCA, o médico falou sobre os males da medicalização excessiva, a influência da indústria farmacêutica e sobre como descobriu sofrer de um transtorno mental questionável: o transtorno da compulsão alimentar periódica.

ÉPOCA – O senhor ajudou a escrever um guia, o DSM, que, de certa maneira, tem a difícil missão de definir o que é um comportamento normal e o que é um transtorno mental. Como distinguir o que é normal do que não é? Allen Frances – O problema é que não existe uma fronteira clara que separe essas duas condições, o que é normal e o que não é. Ansiedade e angústia são fenômenos inerentes à condição humana. Determinar qual tipo e qual nível de angústia constitui um transtorno psiquiátrico foge ao trivial. Os médicos e cientistas conseguem ser muito claros e precisos ao diagnosticar problemas psiquiátricos severos. Temos tratamentos para esses males, como a esquizofrenia. Tratamentos muito eficientes, mas que recebem pouco financiamento no mundo.

De outro lado, tentar distinguir as angústias provocadas pela vida cotidiana de uma doença psiquiátrica é algo quase virtualmente impossível. E, comumente, essa tentativa leva a um uso excessivo de medicamentos.Tratamos pessoas que estão, essencialmente, bem. Mas que estão vivendo sob circunstâncias difíceis. Tome o exemplo do Brasil. É um país que passou por muitos problemas econômicos e políticos recentemente. Onde as pessoas têm de lidar com o estresse gerado por epidemias de dengue e zika. Muitas pessoas podem estar se sentindo angustiadas, por causa de um ou mais desses fatores. A solução fácil – e enganadora – é justamente tomar uma pílula para tentar lidar melhor com essa inquietação. Mas ainda não temos sinais de que existe uma pílula para cada um dos nossos problemas.

ÉPOCA – As pessoas se sentem melhor ao tomar essas pílulas, mesmo sem precisar delas? Frances – As pesquisas mostram que a resposta dessas pessoas aos remédios não é muito maior do que a resposta a um placebo. Muitas pessoas que tomam uma pílula acabam se sentindo melhor. Mas isso não é resultado do princípio ativo da pílula. A melhora é resultado da expectativa de que o remédio vai funcionar. Ou da resiliência que surge com a passagem do tempo.Se você tomar um remédio no pior dia da sua vida, quando as coisas melhorarem, você vai achar que seu humor melhorou graças ao remédio. Foi a vida que ficou melhor. Tratar as dificuldades do dia a dia como se fossem uma “epidemia de ansiedade” pode, na verdade, aumentar o rol de problemas já enfrentados pelas pessoas. O melhor que temos a fazer é buscar soluções sociais mais eficientes, em lugar de melhores soluções médicas. Medicalizar problemas sociais frequentemente leva a negligenciar esses problemas sociais. E isso pode causar mais prejuízo que ajudar.

ÉPOCA – Como assim? Frances – Nos Estados Unidos, por exemplo, as salas de aula são lotadas. As crianças têm pouco tempo para praticar atividades físicas e ao ar livre. Por causa disso, enfrentamos uma explosão de sintomas de transtorno de déficit de atenção (TDAH). Deveríamos gastar mais dinheiro para reduzir o número de alunos por sala, e menos na compra de remédios para tratar TDAH. Quando as taxas de desemprego aumentam, as taxas de depressão aumentam também. Melhor do que receitar antidepressivos para as pessoas seria garantir-hes melhor apoio social, para ajudá-las durante o tempo em que estiverem desempregadas. Países como a Dinamarca não têm esse problema – essa correlação entre uso de antidepressivos e desemprego não existe. Porque o governo oferece apoio adequado àqueles que estão desempregados.

ÉPOCA – Como reverter essa tendência ao uso inadequado de medicamentos? Frances – Essa questão se transformou em um problema cultural. A solução passa por educarmos melhor as pessoas. Muitas pessoas alimentam a ilusão de que um diagnóstico médico e uma pílula serão eficientes para tratar problemas para os quais elas não serão úteis. Quanto mais as pessoas se informarem sobre a ineficiência desses métodos, e sobre os riscos envolvidos, melhores serão as escolhas que elas farão. Para elas e para seus filhos. Sou muito favorável ao uso de medicamentos. O movimento antipsiquiátrico me detesta por isso. A questão é que eu sou favorável a usar medicamentos nos momentos em que eles são necessários. Para tratar transtornos claramente diagnosticados. Não é questão de dizer que os remédios são ruins e inúteis. Ou que são, em sua totalidade, perfeitos. Eles são úteis quando bem usados e é maravilhoso que possamos contar com eles. O que ocorre é que os remédios são úteis somente para aquelas poucas pessoas que realmente precisam deles.

ÉPOCA – Quais são as evidências de que usamos medicamentos de maneira errada? Frances – As pesquisas mostram disparidades que preocupam: apenas um terço das pessoas que sofrem de depressão severa recebem tratamento. Mesmo assim, nos Estados Unidos, 11% da população usa antidepressivos. No Brasil, o número gira em torno de 7%. É uma taxa elevada. O que acontece é que muitas pessoas que usam esses medicamentos não precisam deles. E, por outro lado, muitas pessoas severamente doentes não recebem o tratamento adequado. Nos Estados Unidos, o grupo de pessoas que sofre com esquizofrenia é aquele mais negligenciado, dentre os grupos com transtornos graves. Há poucos centros de tratamento por aqui, e o acesso a cuidados médicos é restrito. Nossos investimentos deveriam se concentrar em tratar aquelas pessoas realmente doentes, que foram diagnosticadas da maneira correta, e que podem se beneficiar do tratamento adequado.

ÉPOCA – O senhor diz que o DSM é parcialmente culpado por essa tendência a medicar pessoas saudáveis. Por quê? Frances – Eu trabalhei na elaboração do DSM III, que foi publicado em meados dos anos 1980. Aquela foi a primeira edição a se tornar um best-seller. Ficamos embasbacados com o grau de influência que o manual conquistou. Foi desproporcional. O DSM deveria ser visto como um conjunto de recomendações para facilitar o diagnóstico psiquiátrico, e não como uma bíblia. Percebemos, com o tempo, que tudo o que estiver no DSM que puder ser mal interpretado, será mal interpretado. O DSM não provocou, mas contribuiu para o surgimento de diagnósticos excessivos e para o uso descuidado de medicamentos psiquiátricos. Minha esperança é de que, uma hora, as pessoas vão se dar conta de que nem toda angústia constitui problema psiquiátrico. E de que não existe uma pílula para cada problema que enfrentamos. Espero que, em breve, voltemos a fazer uso mais conservador do DSM, que costumava funcionar muito bem ao delinear os problemas enfrentados por aqueles com transtornos graves, e ao sugerir tratamentos para essas pessoas. O DSM não é bom ou ruim. O problema está na maneira como ele é usado.

ÉPOCA – O senhor coordenou os trabalhos do DSM IV. Ele também foi mal interpretado? O senhor se sente responsável por alguma nova epidemia? Frances – Quando elaboramos o DSM IV, tentamos, com afinco, reduzir o risco do excesso de diagnósticos. Havia 94 novas sugestões de doenças. Incluímos apenas duas. Cobramos evidências científicas sólidas. E testes de campo, antes de introduzir novos transtornos. Ainda assim, não conseguimos antecipar três epidemias de falsos diagnósticos que surgiram depois do DSM IV. As epidemias de déficit de atenção – um transtorno que constava em versões anteriores doDSM; de autismo e de transtorno bipolar. Elas surgiram resultando de fatores externos, que não conseguimos antecipar.

ÉPOCA – Quais fatores externos? Frances – As companhias farmacêuticas conseguiram, nos Estados Unidos de 1997, o direito de fazer propagandas focando o consumidor final. Hoje em dia, na TV e na internet, quase um terço dos anúncios são de medicamentos. As drogas psicotrópicas estão entre as mais anunciadas, porque são caras e lucrativas para as empresas. Isso conduziu ao aumento drástico dos índices de transtorno bipolar e de déficit de atenção. O aumento desses diagnósticos aconteceu porque as farmacêuticas investiram pesadamente na promoção dessas doenças. O salto no número de diagnósticos de autismo aconteceu porque, no DSM-IV, introduzimos o diagnóstico de Asperger. Ele permitiu que fossem consideradas como transtorno manifestações muito fracas de comportamento semelhante ao autismo. Esse diagnóstico foi estimulado porque, nos Estados Unidos, ele permitia aos pais cobrar que os filhos recebessem mais atenção nas escolas. As crianças diagnosticadas com Asperger podiam ser realocadas para salas menores, e ganhavam mais tempo para resolver os exercícios durante as provas.

ÉPOCA – O senhor se tornou um crítico severo da nova versão do manual, o DSM V. Qual o problema com ela? Frances – O problema com o DSM V é que ele foi agressivo ao incluir um grande número de novos diagnósticos, e ao reduzir as exigências para determinar se uma pessoa está doente ou não. Ele abriu ainda mais os critérios diagnósticos para transtorno de déficit de atenção; introduziu um transtorno da compulsão alimentar periódica, que já é usado na promoção inadequada de pílulas dietéticas; e criou o transtorno de humor desregulado – que, essencialmente, descreve variações de humor nas crianças. Eles também introduziram uma coisa chamada pré-demência, que pode ser facilmente confundida com os esquecimentos comuns que ocorrem conforme as pessoas envelhecem.

ÉPOCA – Compulsão alimentar periódica? Comer muito de vez em quando é um transtorno psiquiátrico? Frances – Exatamente. Se você come excessivamente – como faço sempre que vou ao Brasil – uma vez por semana por 12 semanas, você agora sofre de um transtorno mental chamado compulsão alimentar periódica. E as farmacêuticas já promovem medicamentos para isso na televisão americana. Há um comercial com a Monica Seles, uma campeã de tênis. Ela conta que tinha esse problema, tomou uma pílula e agora está bem. As pessoas que introduziram esse transtorno tinham boas intenções. Recomendam terapia cognitiva para esse mal. Mas não faz sentido anunciar esse tipo de tratamento na TV. E as empresas farmacêuticas procuram toda e qualquer lacuna no sistema para promover seus produtos.

ÉPOCA – Quais as consequências de receber um diagnóstico errado para transtorno psiquiátrico? Frances – Recebo e-mails diariamente de pais cujos filhos foram considerados doentes. É muito fácil dar num diagnóstico errado. É quase impossível desfazê-lo. Um diagnóstico errado estigmatiza e provoca tratamento desnecessário. O momento de diagnóstico é um ponto de virada na vida de uma pessoa. Por isso, o processo de diagnóstico deve ser conduzido com lentidão. Por meio de observações demoradas, feitas por profissionais qualificados. Muitas vezes, o diagnóstico é feito muito rapidamente, na primeira visita ao médico, e por alguém não especialmente treinado para isso. O diagnóstico correto é de extrema importância. Mas, muito frequentemente, ele não ocorre. Isso (o diagnóstico errado) acontece com frequência maior em meio àqueles grupos mais vulneráveis: crianças e idosos. As crianças são os pacientes mais difíceis de diagnosticar, porque mudam muito e em pouco tempo. No caso dos idosos, a dificuldade existe porque alguns sintomas resultam dos efeitos colaterais de outros medicamentos, ou sinais de problemas neurológicos – e não de transtornos psiquiátricos. Esses dois grupos tendem a receber medicação em excesso.

ÉPOCA – A tendência à medicalização pode ter impactos econômicos para países como o Brasil, que contam com sistemas de saúde públicos e universais? Frances – O Brasil conta com um sistema público de tratamento psiquiátrico que mantém o doente próximo da sociedade. Esse tipo de iniciativa é de extrema importância para diminuir o número de pessoas internadas em hospitais psiquiátricos. E é aí que se deve investir. Nos Estados Unidos, temos 350 mil pessoas que sofrem de transtornos psiquiátricos graves e estão internadas. E outras 250 mil pessoas doentes vivendo nas ruas, cujos problemas são negligenciados. Enquanto isso, como sociedade, gastamos fortunas em tratamentos para pessoas que não precisam deles. No Brasil, vocês teriam um sistema melhor se aumentassem os investimentos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Eles oferecem tratamento de qualidade para pessoas que sofrem de transtornos graves, e isso é essencial. A ideia de reduzir o número de leitos em hospitais psiquiátricos chegou ao Brasil nos anos 1960, importada da Itália – onde havia um crescente movimento antimanicomial na época. É uma iniciativa maravilhosa, e que precisa ser bem financiada para dar bons resultados. Entendo que o Brasil passa por dificuldades econômicas. Mas, se houver a ambição de criar planos de longo prazo para o setor, minha recomendação é de que se deve fortalecer esse sistema, que trata pessoas com doenças severas. E gastar pouco com a compra de medicamentos para pessoas que não precisam deles.

Fonte: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/09/receitamos-remedios-psiquiatricos-gente-saudavel-diz-medico-allen-frances.html

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